terça-feira, 25 de novembro de 2008

(H)Estórias de Brest


Brest é uma cidade francesa localizada na região da Bretanha - região que dá nome ao antigo reino anexado à França por volta de 1300. Segundo uma estória que ouvi por aqui (e cuja veracidade não procurei confirmar), a rainha da Bretanha, num acordo entre os dois reinos, teria se casado com o rei da França nessa época, aceitando desposar cada um dos herdeiros caso o rei viesse a morrer. Em contrapartida, a França se comprometeria a não cobrar impostos nas estradas da Bretanha.

Resultado. A rainha se casou três vezes, com cada um dos irmãos mais novos do rei, e cerca de setecentos anos depois a Bretanha continua sendo a única região da França em cujas estradas não se cobra pedágio!

Várias outras estórias curiosas podem ser contadas a respeito de Brest, como a respeito de qualquer outro lugar (real ou imaginário). Vou me limitar a apenas duas mais.

H(e)stórias
A cidade se localiza numa bahia estratégica, onde se encontra a principal base da marinha que dá acesso à costa Atlântica, em direção à América e bem próxima à Inglaterra. Isso fez da região ao redor um ponto militar estratégico para a marinha desde as guerras napoleônicas.

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Durante a segunda guerra ela foi quase totalmente destruída e reconstruída décadas depois, sendo que algumas construções utilizadas pelos alemães, como alguns pontos de vigia e este porto de submarinos, ainda se mantém.

Não deixa de ser um sentimento diferente ver com seus próprios olhos uma pequena parte da história que lemos por muitos anos nos livros e da qual poucas vezes consigo me convencer que tenha sido real.

Faróis

A costa é magnífica, digna de um cenário de filmes de tempestades e naufrágios. Devido à quantidade de navis e entradas, podemos ver vários faróis espalhados ao longo do cenário.



Um desses faróis teve um papel importante na vida de Odile, a gentil senhora que me recebeu como um filho em sua casa (mal posso descrever os pratos tradicionais da bretanha cozinhados por ela).


Foi para trabalhar na construção deste farol (à esquerda ao fundo na imagem acima) que seu pai imigrou da Polônia para a França, há mais de 60 anos atrás. E foi em Brest que conheceu sua esposa, criou seus filhos e resolveu passar toda sua vida dali para frente.
De certo modo, por causa "deste faról" não só Odile vive em Brest, o que me possibilitou estar lá por alguns dias (pois a conheci com seus filhos no Brasil há 7 anos atrás), mas mais. Por causa "deste farol", quem sabe, estamos nós também reunidos hoje.

sábado, 1 de novembro de 2008

Estrangeiros



Uma hora já havia se passado, num encontro que tinha hora marcada. E mais três estavam por vir. Na fila, cada qual com sua senha em mãos, num espaço onde passaportes das mais variadas nacionalidades não-união-européias se encontravam. Como de costume nessas situações, ele já havia olhado para os dois lados da fila, a procura de pessoas, a procura de uma maneira de aproveitar o tempo (evitável) de espera.

Visto que não conseguira encontrar uma maneira de se engajar na conversa do casal ao lado (o que parecia uma turca e um japonês), muito envolvidos num diálogo introspectivo, e que, da face oposta, os coreanos também não aparentavam uma imagem amistosa, puxou um livro da mochila. Já havia atravessado todo um capítulo ao longo daquela primeira hora. No entanto, antes que começasse a desbravar segundo, resolveu erguer novamente as sobrancelhas e ler novamente o mundo exterior.

Nesse momento, um som familiar foi reconhecido e o atraiu para mais perto. Não foi preciso falar nada. O olhar o delatou. Eram brasileiros (aqueles que enfrentavam problemas na universidade). Não precisavam mais esperar e partiram. Mas lhe deixaram uma senha, que lhe fazia sair da posição 132 para a posição 122 – e que, ao final, resultou num ganho de uma hora (a menos).

Tendo percebido, pela experiência compartilhada com seus compatriotas, a velocidade média de chamada dos números – bastante inferior à velocidade média de chamada das letras que entre eles vinham – também decidiu partir. Foi ao banco, passou em casa, comeu, trocou uma frase amistosa com o colega da recepção. E voltou. A contagem já estava nos 90, mas ainda distante dos 100. Observou novamente. Uma cadeira vazia, estrategicamente posicionada. Sentou-se ao lado da moça, de número 150 e cuja nacionalidade ele nunca soube.

Ela fazia psicologia. Era fonoaudióloga e havia decidido cursar uma nova graduação fora de seu país, a fim de desenvolver seus estudos sobre cognição. Ele fazia doutorado em sociologia. Era economista, mas se interessava particularmente pela psicologia social. E conhecia uma lingüista, não muito distante dali, cujo campo de estudo se aproximava da análise cognitiva. Embora não fosse sua área, adorava escutá-la falar sobre os modelos computacionais elaborados para discutir o funcionamento do cérebro no processo de construção de sentenças da fala.

Assim, em 5 minutos já haviam percorrido as mais distantes áreas do conhecimento, das ciências naturais às sociais, atravessando, por meio da psicologia, a economia, a sociologia, a biologia e a computação. Para ele, todas as barreiras disciplinares e continentais estavam naquele instante superadas. Muito tempo ainda lhes restava.

Sugeriu um café. Ela recusou: “Pas de café pour moi”. Ele insistiu, com seu jeito calmo. “Água? Chocolate?” “Tem certeza?”. Ela não queria nada. Talvez não estivesse acostumada a receber (ou oferecer) algo sem esperar nada em troca. Ao menos não de um estranho. Talvez para ela, aceitar algo, mesmo que oferecido de forma livre e gratuita, seria o mesmo que assumir um compromisso.

Receber é, muitas vezes, mais difícil do que pensamos, do que compreendemos. Todos os dias rejeitamos coisas. Objetos, olhares, cumprimentos. São pequenos ou grandes atos, cujo efeito possível, no caso de uma escolha inversa, permanecerá ignorado. E por conseqüência, permanecerá banal, dando a confortável impressão de irrelevância. Essas idéias não lhe haviam cruzado a cabeça, quando se levantou, sorriu, despediu-se e se dirigiu a cafeteria.

Numa outra fila, pequena o suficiente para não permitir maior contato com seus apressados visitantes, não se preocupou em ceder algumas vezes seu lugar. Menos ainda se preocupou com as crianças, que invertiam constantemente seus pedidos aos pais. Café em mãos. Retornou. Verificou que a barreira dos 100 havia sido rompida e, sem perceber que seu último acento estava já ocupado, se sentou numa posição onde poderia ouvir facilmente seu novo número (122 e não 132) quando fosse chamado.

Havia chegado lá às 08h30m, assim como aquela centena de gente que acreditava que aquele seria o seu, e somente o seu horário, já que era pré-agendado. E já se aproximava das 13hs. Como todos os dias (!), um dos funcionários que organizava as senhas apareceu para avisar aqueles que estavam com números acima dos 130, que poderiam sair para comer algo caso desejassem, pois não seriam chamados tão cedo.

Com a notícia dada pelo funcionário, ele se sentiu ao mesmo tempo feliz, pelo contato com os brasileiros ter-lhe permitido ser atendido ainda pela manhã, e indignado, por saber que a metade daqueles que haviam chegado ao mesmo horário que ele, poderia, sem prejuízo, ter chegado depois do almoço. Reparou, entre aqueles que saíam, a moça que havia rejeitado o café. Assim como a maioria dos demais, ela não pareceu surpresa com o aviso e se foi, sem demonstrar perturbação por ter esperado 5 horas à toa.

Ele então voltou ao livro e, no segundo capítulo (o qual terminou pouco antes de ser chamado), reencontrou sua antiga senha. Qual seria agora o destino daquele pequeno pedaço de papel? Atirado ao lixo sem piedade, aquele objeto era uma fenda entre dois universos paralelos, uma possibilidade vislumbrada entre milhares desconhecidas por trás de uma simples oferta. Mas todos haviam partido e ela não aceitara o café. Ah, o café. Se o tivesse aceitado, certamente o papel teria sido seu.