quarta-feira, 16 de março de 2011

Dois pesos

Dois eventos assustadores envolvendo usuários de bicicleta ocorreram no Brasil em menos de duas semanas. Um em Porto Alegre, outro em Brasília. As semelhanças entre os casos não são evidentes, mas revelam duas consequencias assombrosas da desigualdade social no Brasil que quase sempre andam juntas – violência e preconceito.

Porto Alegre, 25 de fevereiro de 2011: um homem de 47 anos, funcionário do Banco Central, avançou seu carro sobre um grupo de pessoas que pedalava durante uma intervenção conhecida como bicicletada, fugindo sem prestar socorro às vítimas.

Brasília, onze dias depois: um ciclista é morto com um tiro no peito, após reagir a um assalto. O assassino, um jovem de 14 anos, foi linchado pela população e veio a falecer no hospital poucos dias depois.

Os dois incidentes são apenas exemplos extremos da violência urbana que a população do país enfrenta diariamente. O que pensar de tudo isso?

Em uma lista de e–mails de um grupo de ciclistas de Brasília, sugeriu-se que a reação violenta do motorista de Porto Alegre teria sido provocada por um conflito supostamente iniciado pelos ciclistas, que não deveriam ter impedido a passagem de carros. Assim, o incidente seria responsabilidade dos ciclistas, pois “violência gera violência”. Contudo, todas as imagens do incidente indicam que o passeio era pacífico(!), além da mensagem do panfleto distribuído pelos participantes durante o encontro que, aliás, expressa bem o funcionamento da bicicletada:



A incompreensão generalizada sobre os fenômenos de natureza social e o julgamento precipitado é tão grande no Brasil que leva alguns indivíduos, mesmo com conhecimento sobre o uso da bicicleta, a fazerem afirmações sociologicamente e moralmente absurdas. Vejamos. No mesmo grupo de e-mails anteriormente citado, as manifestações sobre o incidente em Brasília foram bastante diferentes do primeiro caso, em Porto Alegre. Ao invés de defender o jovem criminoso, como no primeiro caso, os comentários dessa vez comemoravam a sua morte, com dizeres do tipo “justiça foi feita” ou “Desde quando matar bandido é crime?”.

Ora, como é possível partir em defesa de um homem de 47 anos, bem formado, com emprego estável, que atropela intencionalmente mais de vinte pessoas e ao mesmo tempo comemorar o assassinato brutal de uma criança de 14 anos? Não pretendo de forma alguma justificar o assassinato que o jovem cometeu, apenas refletir melhor esses eventos.

Imagine que fosse possível exterminar de um dia para o outro todos os marginais de Brasília. Mesmo que isso fosse possível, absolutamente nada iria mudar a médio ou longo prazo. Um ato como tal apenas alimentaria o prazer de vingança de alguns, mantendo inalterado o mecanismo principal que produz indivíduos violentos, que é a desigualdade e a desintegração social e econômica. A desigualdade e da desintegração social (como é o caso claro do abismo entre a periferia e o centro de Brasília) tem como resultado facilmente previsível a violência. O que esperar de jovens abandonados a sua própria sorte, num mundo em que a linguagem comum é a força bruta?

A questão não é simplesmente sobre a legitimidade ou não de se fechar uma rua para que um grupo de ativistas expresse seu desejo por uma cidade mais sustentável. O que preocupa realmente é essa visão torta de justiça, baseada numa percepção individual equivocada lógica e sociologicamente. Segundo essa visão, não é justo afrontar o direito individual dos motoristas de se deslocarem pelas vias construídas pelo poder público, mas é justo matar crianças que se tornaram criminosas por não ter direito a alimentação, escola, saúde, educação e todos os demais serviços abandonados pelo poder público.

Porque não olhar a questão de um ponto de vista mais amplo? Entre 2008 e 2010, foram mais de 10 milhões de carros nas ruas, o que significa quase dois carros para cada neném nascido no mesmo período. O incentivo ao transporte individual oferecido pelo governo federal, acompanhado de uma falta absoluta de incentivo ao transporte coletivo e ao transporte não motorizado, é um crime social tão ou mais grave do que um atropelamento ou um assassinato de um ciclista isoladamente. O resultado desta política é a morte de milhares de pessoas em acidentes de todos os tipos todos os anos, o aumento da poluição e a deterioração da saúde.

Impossível justificar a ampliação do acesso da população a um carro pela necessidade de manutenção de postos de trabalho, já que não está se incentivando apenas a aquisição de um carro mas, principalmente, seu uso como principal meio de deslocamento. Isto é totalmente irracional, dado que existem alternativas muito mais eficientes, baratas e saudáveis de deslocamento.

Os dois casos, de Porto Alegre e de Brasília, são tão somente reflexos extremos de eventos violentos de mesma natureza que ocorrem diariamente. Ou seja, não adianta apenas punir exemplarmente os indivíduos desviantes, sem tratar do problema como um todo. Se não se combater a estrutura que produz maus motoristas, nem se combater a estrutura que produz desigualdade, muito pouco mudará efetivamente.